Na rota do “leão” ou no caminho do descaminho!
por: Thathyana Weinfurter Assad | em: 19/02/2016
Há os que se questionam sobre as razões de estudar normas estabelecidas juridicamente, já que, por aqui, cada cabeça (juiz) é uma sentença e, cada decisão, uma caixinha de surpresa. Jurisprudência, ao que parece, é como pacote de bala sortida: tem de toda cor, de todo sabor. A segurança jurídica fica no plano abstrato e sua falácia concreta bate na porta do cidadão.
Pausa para o riso (da piada pronta). Ou para o choro (escolha o motivo).
Sigamos adiante.
Nesse contexto (e fora dele também), a indignação social quanto ao pagamento de tributos parece contaminar as redes sociais, os papos de livrarias, os comentários em jornais. O “leão”, cada vez mais voraz, é achacado, pois, afinal, os pagantes de tributos queriam ver, na prática, serviços públicos de melhor qualidade prestados. No entanto, acabam vendo notícias de propinas a alguns agentes públicos que deveriam zelar pela legalidade e moralidade, mas que, ao contrário, quiseram construir, às custas do cidadão, um cofre do qual até tio Patinhas sentiria inveja.
Apesar de tudo isso, é preciso ter em mente: o Estado, para garantir o mínimo ao cidadão (se este é o Estado que queremos), não se suporta sem o pagamento de tributos. E, ainda, em alguns casos, os tributos servem para a proteção da própria economia nacional, em relação às mercadorias estrangerias que ingressam no país. O que não se pode, claro, é extrapolar limites, especialmente os constitucionalmente garantidos.
O crime de descaminho tem como objeto, justamente, o deixar de pagar “direito ou imposto” devidos quanto à entrada, saída ou consumo de mercadoria. É, pois, mais um delito de estudo do Direito Penal Aduaneiro. Ao contrário do contrabando, não se refere a mercadorias proibidas, mas sim permitidas. Está ele preocupado, pois, com o pagamento dos direitos devidos relativamente às mercadorias permitidas, e na punição daqueles que praticam o fato descrito em sua tipificação legal. Exemplo: alguém que traz para o país, sem o pagamento de tributos devidos, vários aparelhos celulares, originais, que adquiriu no exterior, comete, em tese, o crime de descaminho.
Estabelece o artigo 334, do Código Penal, com a redação lhe atribuída pela Lei nº 13.008/2014, que:
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem:
I – pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei;
II – pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho;
III – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem;
IV – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.
§2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.
§ 3º A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.
Considerando a alteração promovida pela Lei nº 13.008/2014, que retirou do mesmo artigo legal os crimes de contrabando e descaminho, deixando-os apartados, há quem questione: por que o descaminho permaneceu no Código Penal, no título concernente aos crimes contra a Administração, e não passou a integrar o rol dos delitos estipulados na Lei nº 8.137/1990, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo?
A título de provocação (tal como ponderei fazer, nos artigos iniciais sobre cada infração penal aduaneira), deixo a pergunta: é correta ou incorreta a aplicação, analogicamente ao delito de descaminho, da extinção da punibilidade possibilitada pela Lei nº 9.249/1995, quando dispõe, em seu artigo 34, que “Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.”? Ou, ainda, da Lei 10.684/2003, artigo 9º, § 2º (“Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”)? Ou, também, da Lei nº 9.430/1996, em seu artigo 83, § 4º, incluído pela Lei nº 12.382/2011 (“Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”)?
Afora isso, discutiremos outras questões, tais como: há ou não, afinal, a necessidade de prévia constituição do crédito tributário para a instauração da Ação Penal pelo descaminho? É ela, ou não, condição objetiva de punibilidade?
Ainda, quais os critérios e fundamentos para a aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho, retirando-lhe, no caso concreto, a tipicidade material? Estaria correta a aplicação, por analogia, do patamar previsto no artigo 20, da Lei nº 10.522/2002, que determina que “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)”, ou, então, seria do patamar previsto no artigo 1º, inciso II, da Portaria nº 75, de 22 de março de 2012, do Ministério da Fazenda, que determina o “não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais)”? A reiteração da prática delitiva deve, ou não, influir para a aplicação do princípio da insignificância?
Há, ou não, crime de descaminho, quando a apreensão da mercadoria ocorre numa Área de Controle Integrado – ACI? Neste último caso, não se estaria utilizando, para fins de Direito Penal, o conceito de território aduaneiro (típico do Direito Aduaneiro), que não equivale ao conceito de território nacional (utilizado em Direito Penal)?
Pausa para respirar.
O país está em crise.
Mas precisamos continuar.