Um emblemático caso de reconhecimento de pessoas
por: Thathyana Weinfurter Assad | em: 01/07/2016
Estar no lugar errado, na hora errada: qualquer um de nós pode passar por isso. Foi o que ocorreu naquele caso, no ano de 2007. Eram três amigos, cada um com seus 18 e 19 anos de idade. Cresceram juntos. Os familiares mantinham amizade há muitos anos. Até que chegou aquele fatídico dia.
Antes, porém, de narrar o que ocorreu naquela data, preciso descrever, fisicamente, os três. Eram de mesma idade, tinham alturas aproximadas (em torno de 1m60cm), mesma cor de pele (parda), olhos escuros, cabelos escuros. Eram, realmente, muito parecidos. Um deles – e apenas um – tinha um piercing numa das orelhas. Os outros dois não. Os três eram de famílias não abastadas, porém muito trabalhadoras.
Naquele dia, um dos amigos (o que tinha o piercing na orelha) convidou os outros dois para darem uma volta no seu novo carro, depois da aula na escola. Os jovens, até em razão das suas idades, entraram em estado de euforia! “Uau!!! Daremos uma volta no novo carro do nosso amigo!”
Parabenizaram o amigo pela conquista, colaram sorrisos no rosto. Aquilo não era apenas uma volta de carro. Para eles, era um evento. Foram, então, os três. O que fez o convite foi dirigindo. Um dos outros sentou no banco da frente, do passageiro, e o outro, no banco de trás.
Os três alegres, animados com o fato de o amigo ter tido uma conquista tão importante. Ele trabalhava tanto, era merecedor de ter conseguido comprar um carro. Era um dia especial. E tudo estava indo muito bem, até que…
Passaram em frente a um módulo policial. Para os dois passageiros, algo absolutamente normal. Para o motorista, no entanto, o nervosismo. Estranhamente, começou a acelerar – muito – o veículo. Os outros dois, sem entender, pediram para ele diminuir a velocidade. De resposta, apenas o silêncio. Uma viatura policial, de repente, estava atrás do carro, com sirene acionada, ordenando que o motorista parasse o veículo. Ele não parou. E um clima de pânico tomou conta daquele tão pequenino ambiente do carro.
Os amigos – passageiros – falaram para o amigo motorista parar o carro. Em resposta, o silêncio e o aumento da velocidade. Pânico total. Os outros dois não estavam entendendo nada.
Nesse meio tempo, o amigo motorista, sem falar uma palavra sequer, abre o porta-luvas, e dali retira uma ARMA! E não parou por aí: com o revolver em mãos, atirou na viatura policial que estava perseguindo o veículo, logo atrás.
Os dois outros, apavorados, não conseguiam sequer diluir mentalmente o que estava ocorrendo, quanto mais pensar em tomar alguma atitude. Gritavam com o amigo motorista, mas de nada estava adiantando. Certamente, estavam no lugar errado, na hora errada (e, quiçá, com o amigo errado).
Os policiais, no revide dos tiros que estavam recebendo, atiraram em direção ao veículo e acertaram no amigo motorista. Logicamente, assim o carro parou. Para a infeliz surpresa dos dois amigos, que ali estavam de boa-fé, aquele carro tinha registro de roubo.
Resultado: o amigo motorista, baleado, foi levado ao hospital. Os outros dois, passageiros, foram encaminhados para a Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos de Curitiba.
Amigos costumam confiar em seus amigos, especialmente quando a amizade é de tantos anos. Nenhum deles perguntou se o carro era roubado. Que amigo pergunta isso a outro, sem qualquer razão para desconfiar?
Sem ainda entender a razão do convite do amigo, então baleado e no hospital, os dois chegaram à Delegacia. O Delegado de Polícia, que estava a cargo da investigação, entrou em contato com o dono do veículo, para que fosse até o local, a fim de proceder ao reconhecimento de pessoas. Ou seja: era preciso se constatar se aqueles dois foram, ou não, os autores do crime de roubo do veículo.
A vítima do roubo chegou, então, à Delegacia. No caso, o Delegado de Polícia agiu exatamente como determina a legislação, no que tange ao reconhecimento de pessoas.
Para relembrar, preconiza o artigo 226, do Código de Processo Penal, que:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
E assim ocorreu: o Delegado solicitou que a vítima, antes de ver as pessoas a serem reconhecidas, descrevesse as características de quem lhe efetuou o roubo do veículo.
O roubo havia sido praticado por duas pessoas. A vítima descreveu: um deles, com aproximadamente 1m60cm de altura, cabelos e olhos castanhos, cor de pele parda, com um piercing numa das orelhas (exatamente a descrição do amigo baleado, que naquele momento estava no hospital). O outro autor do roubo, com aproximadamente 1m80cm de altura, LOIRO, de olhos claros, pele clara.
Após tal descrição, a vítima foi levada a reconhecer os dois que foram encaminhados para a Delegacia (lembrando, ambos com cor de pele parda, cabelos e olhos castanhos, de 1m60cm de altura, sem qualquer piercing nas orelhas).
Ao olhar os dois, a vítima fez o reconhecimento POSITIVO (?!?!?!) de pessoas. Afirmou, sem sombra de dúvidas, que aqueles dois que ali estavam eram os autores do roubo (!!!). Inclusive, apontou a um deles e disse que ele era quem estava segurando a arma, no momento do crime.
Após alguns dias, o amigo baleado recuperou-se, saiu do hospital e foi, também, encaminhado à Delegacia. Os três (de cabelos castanhos) passaram a responder processo penal por um crime de roubo (que, lembrem, havia sido praticado por duas pessoas – um loiro e um moreno).
Em audiência de instrução, o senhor, vítima do roubo, reafirmou que aqueles dois eram os autores do roubo (logicamente, passou a reconhecer o que já havia reconhecido). Ao ser questionado sobre qual deles era o loiro que ele havia descrito, ficou nervoso. Levantou a voz. Mas não era a pergunta que, de fato, não queria calar naquele processo?
Durante os interrogatórios, o amigo, que efetivamente praticou o roubo, confessou os fatos, explicou o ocorrido e, inclusive, disse quem era o loiro que havia praticado o roubo com ele. Arrependido, disse que convidou os dois amigos, que sequer sabiam que o carro era roubado, para dar uma volta aquele dia, e que jamais imaginou as conseqüências dessa ação.
Após alguns meses, os dois amigos foram absolvidos. O outro, condenado.
Desse emblemático caso, sempre me perguntei: e se o amigo motorista tivesse morrido no hospital? E se o Delegado de Polícia não tivesse seguido o rito da Lei quanto ao reconhecimento de pessoas? Alguém teria acreditado naqueles dois, inocentes, que apenas estavam no lugar errado, na hora errada? Dificilmente.
São as mazelas do processo penal. São as dores da injustiça. E, contra elas, um advogado criminalista deve, incansavelmente, lutar.